Em apenas algumas horas, dois ataques aéreos israelitas arrasaram locais que representam séculos da riquíssima história do sul do Líbano. A região, conhecida como Jabal Amel, está desde há muito associada à sua comunidade muçulmana xiita, predominantemente duodecimano, com raízes profundas e considerada uma das mais antigas do mundo. Esta zona montanhosa, atravessada pelo rio Litani, tem vista para o mar Mediterrâneo e está ligada ao monte Líbano, a Wadi al-Taym e ao vale de Beqaa.
Estes ataques não se limitam a fazer vítimas humanas; o seu objetivo é eliminar as raízes, a cultura e os meios de subsistência das populações do Líbano e da Palestina. Não se tratam de danos colaterais – é uma estratégia intencional para apagar a alma da terra, a sua história e o seu povo.
Mas, à medida que milhares de pessoas são mortas e feridas no genocídio israelita em curso na Palestina e nos ataques brutais ao Líbano, a necessidade urgente de salvar vidas e de lidar com o trauma ofusca muitas vezes a perda devastadora causada pela destruição sistemática do património, da memória e da história.
O coração do sul
Uma das inúmeras vítimas desta ação foi o mercado histórico de Nabatieh1Nota do tradutor: apesar de encontrar a designação “Nabatia”, optou-se por manter a designação inglesa, pois não conseguimos encontrar essa designação em documentos oficiais, a maior cidade de Jabal Amel e um movimentado centro de vida e comércio durante gerações, com edifícios e lojas mais antigos do que a própria Israel.
Nabatieh foi durante muito tempo um centro comercial e cultural de uma região que historicamente ligava a Jordânia, a Palestina, a Síria e o sul do Líbano, um ponto de encontro onde comerciantes e viajantes se reuniam, trocando bens e histórias, mantendo viva a força vital cultural e económica da região.
A destruição do mercado não é um incidente isolado, mas faz parte da estratégia de longa data de Israel de atacar marcos culturais, espelhando um desejo colonial de apagar as raízes e as memórias dos povos que habitam estas terras.
Segundo Kamel Jaber, um jornalista local que há muito acompanha a história da sua amada cidade, “a destruição é tão completa que torna os socos 2Nota do tradutor: também designados de “azoques” ou “souq” em inglês, socos corresponde a todo o tipo de mercados árabes. irrecuperáveis. Desde 1975, temos vindo a perder gradualmente o nosso património devido aos ataques israelitas e, de todas as vezes, a resposta tem sido reconstruir algo moderno, não recriar o antigo como era”.
Milhares de pessoas recorreram às redes sociais para documentar os rostos e as histórias deste antigo mercado, entre as quais Badia Hani Fahs3Nota do tradutor: Badia é uma ativista libanesa, conhecida na imprensa internacional por ter lutado contra o facto do divórcio no Líbano retirar a mães a custódia dos filhos, entregando-a à autoridade masculina da família paterna. Apesar disso, conseguiu reunir-se com os filhos mais de 10 anos depois do divórcio:
O coração de Nabatieh ardeu…
Kamel Jaber, jornalista, numa publicação na rede social Facebook
Aqui estava a loja de guloseimas Dimasi, aquela que deixou Sidon há muito tempo e se instalou em Nabatieh. Há apenas alguns meses, fizeram uma remodelação e começaram de novo.
Ao lado, estava a loja do meu primo Kamel Jaloul, a primeira sapataria de homem do mercado. Nenhum noivo ia ter com a sua noiva sem usar sapatos do Jaloul.
Na esquina, ficava a livraria Hijazi. Todos nós comprávamos lá as mochilas e o material escolar para nós e para os nossos filhos. Quando éramos miúdas, costumávamos pedir emprestados romances em segunda mão por apenas algumas liras.
Em frente, ficava o Studio Al-Amal. Entrávamos para ver o Al-Husseini e encontrávamos fotografias com 60 a 70 anos, fotografias dos nossos avós e dos seus amigos.
Um pouco mais abaixo ficava a Farmácia Baalbaki, gerida por uma família que veio como refugiada do vale do Beqaa. As suas origens são da família Alou, mas foi-lhes dado o nome Baalbaki, tornando-se este o seu apelido.
Virando à esquerda, deparamo-nos com o orgulho da indústria de Nabatieh, a Sultan Sweets. O cheiro a limpo, a natas frescas e a kunafa extra estaladiça enchia o ar. Não se podia entrar sem que nos oferecessem um doce e um gole de água.
Seguindo em frente, passávamos pela Livraria Farol, propriedade do simpático Rafaat Hatit, que fugiu de Kfeyoun durante a Guerra das Montanhas e se instalou em Nabatieh, mantendo o mesmo nome da livraria.
Em frente à livraria, encontravam-se as duas lojas mais importantes do mercado, geridas por duas mulheres notáveis: Hasiba, Umm Rami Al-Amin, e Maha, mulher do ativista Afif Qaddih.
Na porta ao lado, as Especiarias Al-Mashaal, propriedade de Ali Batata.
Subindo a colina, encontrava-se a Arnout’s Falafel, a loja de falafel mais famosa de todo o Sul. Arnouti é de origem albanesa e viveu em Akka, onde aprendeu a arte de fazer falafel. Depois da Nakba, veio para Nabatieh, trazendo consigo o seu ofício e, a cada ataque a Nabatieh, era atingido por outro desastre.
Ao seu lado, estava a loja do Mukhtar Hassan Jaber, que herdou do seu pai, Nizar Jaber. Era nesta loja que se encontrava tudo o que se precisava. Aqueles que não conheciam Nizar Jaber nunca tinham visto o amor e a bondade encarnados num homem.
Do outro lado, a Discoteca Al-Sha’ar, que fazia o mercado dançar ao som das últimas tendências musicais de leste a oeste.
Este é o nosso coração que ardeu, e não apenas um quarteirão de betão.
Oliveiras antigas, mercados históricos e comunidades inteiras. Não são apenas vítimas da guerra, mas alvos deliberados de uma campanha para negar às populações o seu património e a sua identidade.
Árvores antigas, raízes profundas
Horas depois da destruição do mercado de Nabatieh, outro ataque aéreo israelita atingiu a cidade vizinha de Mayfadoun, destruindo a casa da família Rtail, conhecida pelo seu antigo carvalho do Monte Tabor, que é testemunha da história da região há séculos e é conhecido localmente como a árvore Maloula. Com uma altura superior a 18 metros e um tronco de cinco metros, a árvore de Maloula é mais do que uma relíquia natural. Tem um significado cultural, histórico e pessoal.
De acordo com a tradição local, a árvore esteve sempre ali. Em 1995, Abu Rashid Rtail, um dos seus muitos cuidadores ao longo dos séculos, partilhou histórias contadas pelo seu pai, que viveu até aos 100 anos, e por um ancião da família Najda, que viveu até aos 115, sendo que um e outro alegavam que a árvore tinha o mesmo aspeto ao longo das suas vidas. Com uma longevidade de séculos, a árvore tornou-se um monumento vivo, encarnando o património e a memória de Mayfadoun.
O município de Mayfadoun deu o seu nome ao bairro – “Hay Al Maloula” – como reconhecimento da sua importância. Segundo Rashid Rtail, filho de Abu Rasheed, um grupo de engenheiros chegou a inspecionar o monumento e confirmou a sua notável idade de mais de 500 anos, estimando que poderia até ter uma longevidade mais de, talvez, até 1100 anos. Este tipo de longevidade é raro, sendo que as árvores antigas sobrevivem graças à sua resistência às doenças e ao clima.
Numa entrevista em 2010, Rasheed recorda que a Maloula era muito maior antes de ser repetidamente atingida pela artilharia israelita, destruindo muitos dos seus ramos mais altos. E com a destruição da sua casa “mais do que uma vez devido aos alvos da Maloula, esta recusou-se a cair, mesmo depois da sua congénere na cidade de Deir Siryan ter caído durante a última agressão [na guerra de 2006], tornando-a na árvore antiga mais importante do distrito de Nabatieh”.
A árvore servia de ponto de encontro para viajantes e peregrinos que se dirigiam a Nabatieh para a comemoração anual da Ashura, um famoso evento que honra o martírio do Imã Hussein na Batalha de Karbala, ligando Nabatieh e Mayfadoun através de tradições partilhadas e servindo de testemunha silenciosa dos rituais mais importantes da região. Outrora, os seus ramos acolheram o riso das crianças durante as festas e a sua sombra ofereceu descanso aos viajantes e aos habitantes locais cansados.
Um ataque aéreo israelita a este antigo e majestoso ser vivo e à casa da família Rtail, que se encontrava ao seu lado durante gerações, reduziu a casa a escombros e danificou a árvore que sobreviveu a séculos e talvez a um milénio, mas que poderá ter sido finalmente morta por este último ataque israelita.
O coração de Mayfadoun
A casa do falecido Haj Toufic Rtail, pai dos falecidos Haj Rashid Rtail e Haj Mohammad Reda Rtail.
O lugar da árvore Maloula.
Destruição sistemática
A destruição destes símbolos culturais e históricos está relacionada com uma lógica colonial mais alargada. A árvore de Maloula, a casa de Rtail e o mercado de Nabatieh, tal como inúmeros outros marcos e lugares, não são apenas estruturas físicas: são a personificação da resistência, da história, dos laços e da cultura da comunidade. A sua existência desafia a narrativa de erradicação que Israel procura impor. Durante muitos séculos esta terra foi habitada, o seu povo cultivou histórias ricas, construiu cidades e manteve comunidades que continuam a viver, a criar e a resistir.
Ao lamentar a perda destes marcos insubstituíveis e a perda de vidas humanas de cortar o coração, encontramos o consolo na força da memória e da comunidade. O amor que une as pessoas à sua terra, à sua história e umas às outras permanece inquebrável. Este amor, esta memória, permitir-lhes-á reviver, reconstruir e continuar a viver. Os lugares e as histórias existem na memória e, a partir dessa memória, as pessoas – e a natureza – erguer-se-ão de novo, como têm feito ao longo de gerações.
Este artigo, escrito por Walid El Houri, foi originalmente publicado no site Global Voices Online e republicado em português de Portugal n’o largo. ao abrigo da licença Creative Commons CC BY 3.0.