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o largo.

o mundo num beco. a rádio num coreto. a cultura num blogue. Notícias sobre música, entretenimento, artes, rádio.

17.11.23

Voltaram a viver nas cavernas para resistir à ocupação militar de Israel

A violência contra palestinianos na Cisjordânia escalou com o novo ciclo do conflito Israel-Palestin


por Agência Pública

Iuri Barcelos/Agência Pública

Esta é uma republicação integral em português do Brasil de um artigo da autoria de Iuri Barcelos e disponibilizado originalmente no site da Agência Pública.

O dia começa cedo para os palestinos de Masafer-Yatta, extremo sul da Cisjordânia, que faz fronteira com a Jordânia e o mar Morto ao leste e com Israel ao sul, oeste e norte. Quando o sol nasce sobre as colinas do deserto de Negev, os primeiros raios de luz que invadem as cavernas — morada para muitos ali — dão a deixa para que todos se lancem às tarefas do dia. Uns partem para as terras onde cultivam oliveiras ou pequenas árvores frutíferas. Outros plantam grãos e vegetais, ou criam rebanhos de ovelhas e carneiros. Há mais de um século, os palestinos desta região mantêm um modo de vida único. Encontram na terra um sustento simples e suficiente. 

Desde o início da ocupação militar israelense em 1967, o que também une esses palestinos, além da conexão com a terra, é a angústia de viver na incerteza. A incerteza sobre quando o Exército chegará para demolir suas moradas. A dúvida se a madrugada será de incursões militares, uma noite em claro; ou se na manhã haverá blitz no caminho do trabalho. Mas um dos maiores tormentos desses povos é o temor dos ataques dos novos vizinhos que colonizam a região. 

Foi o que aconteceu no dia 13 de outubro de 2023, quando a apreensão para os palestinos de At-Tuwani se materializou cedo pela manhã. Há um mês, um jovem israelense desceu lentamente o pavimento de concreto de acesso à comunidade, carregando um rifle de grosso calibre nas mãos. 

Com quase 60 anos de ocupação militar, a ameaça das demolições, remoções e violência já virou rotina para os palestinos. O que varia é a frequência e magnitude desses episódios, que parecem oscilar conforme a conjuntura do conflito como um todo. 

Naquela sexta-feira, quando a mais recente escalada de violência na região já havia causado 3.200 mortes, os colonos israelenses de um assentamento no sul de Hebron decidiram entrar na onda de hostilidades. Invadiram a vila de At-Tuwani e balearam o jovem Zacarias Adra com um tiro à queima-roupa no estômago.

Zacarias não é do Hamas, não é terrorista e não estava armado. Ele é primo de outro rapaz que está no epicentro do conflito nas colinas de Masafer-Yatta, fundador de um grupo de jovens palestinos que se juntaram para incentivar famílias a retomar, de maneira pacífica, as terras das quais foram expulsas. E para os palestinos dessas comunidades isso significa voltar para a vida nas cavernas.

Iuri Barcelos/Agência Pública

Juventude de Sumud ocupa cavernas na Cisjordânia para resistir à ocupação militar de Israel _ Iuri Barcelos/Agência Pública

As cavernas de Masafer-Yatta

MARÇO 2018. O intenso ronco do motor do quadriciclo era perceptível mesmo na ventania implacável que varria as colinas de Hebron naquela manhã de inverno. O som denunciava que o piloto acelerava mesmo no declive da montanha, proporcionando uma velocidade vertiginosa à dupla a bordo do veículo. Observando a aproximação de longe, Sami Hureini e Ali Awad não conseguiam identificá-los. Mas, aos 20 anos, os jovens palestinos já tinham idade suficiente para saber que estavam em grande perigo.

Os israelenses que colonizam a região muitas vezes atuam com brutalidade — e não foi a primeira vez que Sami e Ali se viram ameaçados pelos novos vizinhos. Os jovens se tornaram alvos frequentes dos ataques de colonos depois que criaram a “Juventude de Sumud”, movimento de retorno às cavernas de Masafer-Yatta, numa tentativa de enfrentar a ocupação militar, que tenta remover os palestinos da região.

Acompanhado apenas do amigo no inóspito vale que beira a vila de At-Tuwani, Sami sabia que era preza fácil. O quadriciclo já estava a menos de 15 metros quando ele percebeu que o piloto não iria desacelerar, e Sami estava na rota de colisão. O jovem viu quando seu amigo Ali se arremessou ao chão em fuga para a direita, então Sami percebeu que o veículo arrancou em sua direção, mas não conseguiu se safar. Ele enxergou quando o homem que conduzia o quad torceu o guidão para acertá-lo. O ruído do motor deu lugar a um longo grito de dor. Sami estava ferido.

Foi trabalhando nas cavernas das vilas de Masafer-Yatta que Sami e Ali foram surpreendidos pelos colonos no quadriciclo naquele 30 de março de 2018. O atropelamento quebrou a perna direita de Sami ao meio, e o jovem teve que passar por uma operação delicada. Ficou internado por uma semana em recuperação até receber alta. “Nem por um segundo eu pensei em abandonar nosso movimento. Fui direto para Yatta dar um abraço nos meninos”, conta Sami, quando nos conhecemos em 2019, um ano depois do atropelamento, na mesma caverna.

O abrigo passaria despercebido na vasta colina, não fosse pela bandeira palestina fincada em frente à pequena brecha no solo que dá acesso à nova morada dos jovens. A caverna fica na antiga vila de Sarura, que Israel começou a esvaziar nos anos 2000. Ao entrar, a sensação é de silêncio absoluto. Protegidos da ventania de fora, aos poucos os pequenos sons tornam-se perceptíveis — como o ferver da água na chaleira de metal, para o chá que Ali preparava para nós.

Bandeira palestiniana fincada em frente à entrada da caverna. Ao entrar, a sensação é de silêncio absoluto _ Iuri Barcelos/Agência Pública

Os colchões, mantas, utensílios de cozinha e um banheiro improvisado são o essencial — e suficiente — para o convívio do grupo. Os jovens ainda adaptaram uma pequena lareira e um fogão a lenha com um sistema de exaustão para conduzir a fumaça até a superfície, alguns metros acima. “Como não podíamos ter qualquer maquinário, fizemos tudo só com ferramentas de mão mesmo. Foram três meses para construir isso”, conta Ali.

O jovem palestiniano Sami enquanto prepara um chá com um dos poucos utensílios disponíveis no local _ Iuri Barcelos/Agência Pública

As vilas em torno dessas cavernas formam um aglomerado de 12 comunidades-satélites de Masafer-Yatta, cidade mais populosa da região. Alguns chegaram como refugiados da guerra que levou à criação de Israel, em 1948 — ocasião em que mais de 700 mil palestinos fugiram ou foram expulsos de onde moravam. No entanto, os palestinos habitavam as mais de 400 cavernas de Masafer-Yatta há quase dois séculos, principalmente durante o período de colheita ou para estar perto dos rebanhos, sustento da maioria ali.

Hoje, viver nas cavernas é também um ato de resistência. Desde o início da ocupação militar, em 1967, Israel tem proibido palestinos de construir numa porção de aproximadamente 60% do território da Cisjordânia. E as cavernas das comunidades Masafer-Yatta estão justamente nesta região.

Há mais de um século, os palestinianos desta região encontram na terra um sustento simples e suficiente. Essa é a vila de Tuba, da família Awad _ Iuri Barcelos/Agência Pública

No povoado de Tuba, a maioria dos moradores é da família Awad, pequenos agricultores que há cinco gerações vivem na região. Ali Awad, 24 anos, é um dos mais jovens e o primeiro da família a terminar o colégio. Ele tem um estilo moderno. Gosta da barba sempre rala. O cabelo raspado e com linhas bem definidas fica parcialmente escondido pelo boné Nike. Ali aprendeu inglês cedo: além do sonho de ser tradutor, o idioma é importante para se comunicar com os jornalistas, ativistas e agentes humanitários que visitam a região.

Ele fala com orgulho sobre a origem de seu movimento. “A gente construiu algumas tendas, que seriam nossos ‘acampamentos da liberdade’. Mas um dia os militares chegaram e confiscaram tudo. Colchões, gerador de eletricidade, panelas… ficamos sem nada”, conta Ali, enquanto conversamos ao redor de um narguilé, um dos primeiros itens que os jovens trouxeram para a caverna. O rapaz dá um longo trago, solta a fumaça e continua. “Eles diziam que não podíamos construir, então naturalmente pensamos: ‘Nós temos as cavernas aqui. Vamos restaurá-las!’.”

Quem está no telemóvel e de casaco Nike, é Ali Awad. Os jovens tornaram-se alvos frequentes dos ataques de colonos israelitas ao criarem a “Juventude de Sumud”. _ Iuri Barcelos/Agência Pública

Sami Hureini nasceu em At-Tuwani, no ano de 1999. É um rapaz alto e ruivo. Usa um agasalho de lã justo no corpo e veste a calça jeans com a barra cuidadosamente acomodada dentro de botas de couro. A keffiyeh, lenço tradicional palestino, está sempre envolvendo o pescoço do jovem. Filho de pais ativistas, Sami se lembra de quando assimilou que vivia sob ocupação militar. “Eu tinha 5 anos e ia nas manifestações com meu pai, entre as pernas dele”, ele conta. “E quando você vê o exército agredindo seus pais, tudo começa a ficar claro. Eu cresci vendo violência, importunação e ataques contra minha família, minha comunidade. E me deu uma vontade de ajudar. Temos a esperança de responsabilizar todos pelos crimes cometidos contra nosso povo.”

Foi com essa sede de justiça que Sami decide cursar direito na Universidade de Hebron e, em 2017, entrar para a militância junto aos jovens de Sumud. O que Sami talvez não imaginasse é que dali a poucos anos estaria no banco dos réus diante de um juiz militar, aguardando sua sentença.

O processo de paz

Um aperto de mãos entrava para a história em setembro de 1993, no jardim da Casa Branca, sede do governo dos Estados Unidos. O encontro entre o então primeiro-ministro de Israel Yitzhak Rabin e o líder do Organização pela Libertação da Palestina, Yasser Arafat, inspirava esperança: pela primeira vez, autoridades dos dois povos reconheciam o direito do outro existir como país e se comprometiam com um processo de paz para a região. No ano seguinte, os dois receberiam o Prêmio Nobel da Paz pelos trabalhos realizados no que ficou conhecido como “Acordos de Oslo”.

Aperto de mão entre o então líder palestiniano Yasser Arafat e o primeiro-ministro israelita Yitzahk Rabin, a 13 de setembro de 1993 _ Vince Musi / The White House (Domínio Público)

Apesar de ser um marco na história do conflito, o pacto foi questionado. Do lado de Israel, a crítica se dava pelo acordo prever a retirada gradual da Cisjordânia, onde finalmente um Estado palestino poderia ser consolidado. Do outro lado, muitos palestinos reprovaram a medida por concretizar a perda de todo o território dos quais foram expulsos — hoje Israel — durante a Guerra de 1948.

Aos poucos, o acordo foi sucumbindo. O assassinato de Yitzhak Rabin, em 1995, por um israelense de extrema direita abriu espaço para a ascensão de Benjamin Netanyahu, um ferrenho opositor do compromisso. E os desdobramentos da Segunda Intifada, que fez milhares de vítimas nos dois povos, também minaram a possibilidade de o acordo progredir. No entanto, uma parte determinante de Oslo — a classificação provisória das terras da Cisjordânia— segue em vigor até hoje, mais de 30 anos depois. Uma divisão que tem impacto direto na vida dos 3 milhões de palestinos que vivem na região.

O texto de Oslo estabelecia que as áreas “A” seriam comunidades controladas pelos palestinos. Nas áreas “B”, Israel e palestinos fariam uma administração conjunta. Por fim, nas áreas “C”, que correspondem a 60% da Cisjordânia e onde 150 mil palestinos vivem, Israel teria ingerência absoluta. Essa seria uma divisão transitória, para que o processo de paz pudesse avançar.

Ed Wanderley/Agência Pública

Na prática, o território onde o futuro Estado palestino poderia ser consolidado ficou completamente fragmentado pela presença israelense. Hoje as áreas C entremeiam as comunidades palestinas da Cisjordânia, isolando comunidades inteiras umas das outras e acabando com a contiguidade do território palestino. 

São nessas regiões que Israel promove os assentamentos de colonização, movimento que transfere centenas de milhares de israelenses para a Cisjordânia. Um dos motivos que impulsionam a colonização está na religião. São terras bíblicas, com sítios sagrados para os judeus, que foram habitadas por esse povo há séculos. Mas há também o fator político-ideológico: habitar a região aumenta o poder de Israel sobre o território.

A colonização de um território ocupado é considerada um crime de guerra pela Corte Internacional de Justiça e, portanto, ilegal. Ao fragmentar a Cisjordânia e transferir israelenses para a região, a colonização praticamente impossibilita uma solução de dois Estados para o conflito. Por isso, é tida por muitos como o principal entrave à paz na região.

Em 2016, até mesmo os Estados Unidos, fiéis apoiadores de Israel nas Nações Unidas, deixaram de exercer seu poder de veto no Conselho de Segurança do órgão para passar uma das resoluções que exigiam o fim dos assentamentos. A medida demanda que “Israel encerre imediatamente todas as atividades de colonização” e declara que “os assentamentos são ilegais e constituem uma violação flagrante do direito internacional”. O texto foi aprovado por unanimidade, mas Israel nunca cumpriu a determinação. Desde 1967, ano de início da ocupação militar, foram construídos 279 assentamentos na Cisjordânia, para onde mais de 700 mil colonos israelenses já foram transferidos.

É o caso de Ma’on, criado em 1981 entre as vilas de At-Tuwani e Tuba, nas colinas Masafer-Yatta. Com estradas modernas que ligam Ma’on diretamente a Israel, o assentamento hoje é lar para 629 colonos israelenses. O outro lado dessa moeda é que para o colono entrar, frequentemente, o palestino é obrigado a sair.

Expulsões

Sami e Ali eram recém-nascidos quando Israel emitiu, em 1999, uma notificação para a remoção de mais de mil palestinos que viviam dentro do que declarava ser uma zona de treinamento do Exército, a “Firing Zone 918” – área equivalente a 3 mil campos de futebol. Tuba, At-Tuwani e outras dez comunidades de Masafer-Yatta estavam dentro dessa zona.

O promotor do caso apoiou a remoção das famílias argumentando que elas seriam nômades — ignorando o modo de vida e tradições daqueles povos. Os palestinos conseguiram travar as remoções na Justiça, mas foram proibidos de construir ou reparar qualquer edificação. Aos poucos, a presença palestina nas colinas de Hebron foi se tornando insustentável. “As pessoas foram forçadas a sair e foram removidas de suas vidas. De suas árvores, plantações, tudo. E tudo começou no ano em que a gente nasceu”, conta Ali.

Hoje, as casas de 215 famílias nas colinas de Hebron do Sul ainda estão em risco iminente de demolição, mas as incursões do exército miram quaisquer construções palestinas. Por conta desses movimentos, as vilas de Sarura e Kharoubeh já desapareceram completamente.

“As pessoas foram forçadas a sair e foram removidas de suas vidas”, conta Ali _ Iuri Barcelos/Agência Pública

Ainda em 2019, caminhando pelas colinas, Ali e Sami mostram os resquícios de uma tentativa de construir uma casa. Eles contam que a estrutura havia sido demolida três dias antes. “As pessoas passaram a morar em tendas porque é caro demais construir uma casa e tê-la demolida logo na sequência”, diz Sami, desviando dos escombros da obra. Foi o que aconteceu no início de dezembro de 2020 com a vila de Al-Arakiz, vizinha a Tuba e At-Tuwani, que foi palco de uma tragédia que mudaria a vida daquela comunidade e o futuro de Sami Huraini.

Naquele final de ano, o Exército israelense invadiu Al-Arakiz com escavadeiras para demolir quatro casas, uma delas a de um jovem chamado Harun Abu Aram. O lar onde ele morava com a esposa e o filho não tinha alvará da Autoridade Civil israelense — órgão que recusa 98,7% dos pedidos de construções palestinas nas áreas C.

Harun não aceitava abandonar sua vila. Sem teto, estava decidido a reconstruir, mas não demorou até que recebesse uma nova visita do Exército. Cinco soldados israelenses chegaram cedo em Al-Arakiz no primeiro dia de 2021 para confiscar as ferramentas do jovem. A mãe de Harun começa a filmar quando os soldados tentam alcançar o pequeno gerador de energia do filho.

A cena é agoniante. Harun se agarra ao aparelho e, com o auxílio de alguns familiares, entra num cabo de guerra com os militares pelo gerador. Aos berros, Harun implora para que os soldados os deixem em paz. Depois de dois minutos angustiantes, um soldado levanta seu rifle e decide acabar com o embate. Ele puxa o gatilho num disparo à queima-roupa, atingindo Harun no pescoço. O jovem é socorrido ainda com vida pelo pai, Rasmi, que parte em direção a Hebron em busca de atendimento médico para o filho.

Com Harun internado, os palestinos de Masafer-Yatta convocaram uma manifestação. Sami, que então já militava junto aos jovens de Sumud havia três anos, era presença certa. E acabou detido, acusado de insultar um oficial de segurança, perturbar a ordem pública e invadir uma zona militar. Depois de pagar uma fiança equivalente a R$ 10 mil, o jovem poderia aguardar o julgamento em liberdade, mas estaria proibido de frequentar manifestações. 

Como todos os palestinos presos na Cisjordânia, Sami seria levado à corte militar, onde as taxas de condenação passam de 99%, e sua sentença sairia anos depois, justamente num dos períodos mais sangrentos da história do conflito.

O quebrar do silêncio

Estávamos estacionados a poucos metros do topo da colina onde o assentamento de Ma’on foi construído, quando quatro colonos começaram a chutar nossa van. Um deles empunhava uma pistola e desferia sucessivas coronhadas contra o vidro do veículo. Os quatro esbravejavam, mas pouco entendemos o que era dito. Uma coisa era certa: não estavam contentes com nossa presença ali.

Era 6 de fevereiro de 2019, poucos dias depois da minha ida à caverna habitada pelos jovens de Sumud. Eu voltava à região para acompanhar uma visita que um grupo de ex-militares israelenses organizava com jornalistas, ativistas e interessados no conflito. O objetivo deles era contar um lado inexplorado pela Assessoria de Comunicação do Exército: as violações de direitos humanos cometidas na Cisjordânia e em Gaza durante a ocupação militar. 

“Não se preocupem. Eles são assim mesmo”, tranquilizou Ahya Shatz, um jovem que serviu na brigada de combate do Exército. Ele saiu para conversar com os colonos, e o clima era de apreensão. Em agosto do ano anterior, colonos dessa mesma região atacaram um grupo de seis ativistas, e quatro deles acabaram hospitalizados. “Eles chamaram o Exército para declarar uma ‘zona militar’ e interditar o local”, contou. Quando voltou, pediu ao motorista que desse a partida no motor, para que a gente seguisse para um local mais seguro.

A ONG da qual Shatz faz parte chama-se “Breaking the Silence” — uma alusão à quebra do pacto de silêncio entre militares israelenses sobre as incursões nos territórios palestinos. O grupo já colheu centenas de relatos que denunciam diversas formas de violência. “Frequentemente somos nós, soldados, que impedimos os palestinos de acessar suas terras e água. A gente é enviado aqui especificamente para isso”, explicou Shatz sobre as operações nas áreas C. Ele contou ainda que é comum que os militares sejam subordinados aos colonos. “Um dia eu estava vigiando um assentamento e cheguei a receber ordens diretamente de um colono que morava no local.”

A história contada por Shatz lembra um episódio ocorrido em 2014 com quatro garotas palestinas que, a mando de colonos de Ma’on, foram presas por roubar cerejas no caminho do colégio. Naquela tarde, Inshirah Jundiyeh, Randa e Noor Makhrameh e Dalal Zein — todas entre 11 e 15 anos — entrariam para as estatísticas de encarceramento que hoje Shatz denuncia: um em cada cinco palestinos já foram presos na Cisjordânia e em Gaza, mais de 1 milhão no total, segundo a ONU.

O relato se alinha com os depoimentos colhidos pelo grupo sobre a atuação do Exército na Cisjordânia. Como o de um sargento da artilharia que serviu em 2001 nas colinas de Masafer-Yatta. “Nossa missão era fazer a segurança dos colonos judeus. Criar espaço em torno dos assentamentos para que os palestinos não pudessem viver ali. E os colonos tornaram a vida desse povo algo miserável. Eles iam importuná-los, questioná-los, roubavam seus pertences. O ápice foi quando começaram a concretar os poços e as cavernas. Foi então que eles partiram.”

Mas há também relatos de violência direta das tropas do exército de Israel. “Os detidos eram levados para nossa base e lá eles tomavam muitos tapas. Um dia eu vigiava um preso, e ele estava algemado, vendado. A gente tirava fotos do garoto, brincando. Até que começaram a bater nele. Batiam pela risada, para se sentirem homens”, revela um sargento que atuou na região em 2010.

Foram essas práticas que levaram Shatz a começar a questionar a ocupação militar — algo que hoje lhe custa muitas críticas em Israel. “Eu percebi que havia uma discrepância enorme entre o que eu achei que faria no Exército — prevenir ataques terroristas, defender Israel etc. — e o que de fato acontecia, que era basicamente fazer nossa presença ser sentida”, diz. “Os palestinos estão deixando suas terras, deixando suas comunidades. Eles abandonam porque é um pesadelo. E é isso que Israel quer.”

Cavernas das vilas de Masafer-Yatta, no extremo sul da Cisjordânia. Ao fundo, no alto da colina, um colonato israelita _ Iuri Barcelos/Agência Pública

Novos colonos, mais violência

Se os anos 2000 marcam o início da remoção dos palestinos das vilas de Masafer-Yatta, a virada do milênio também anuncia a chegada de novos colonos na região. No entanto, diferentemente dos que migram para os assentamentos desenvolvidos pelo Estado, esses colonos invadem terras consideradas ilegais até mesmo por Israel. Conhecidos como outposts, esses acampamentos são erguidos em toda Cisjordânia por iniciativa de pequenos grupos, frequentemente extremistas e com disposição para a violência.

Havat Ma’on é um desses outposts, criado em 2002 como uma extensão de Ma’on. Ele cortou a conexão entre as vilas de At-Tuwani e Tuba e provocou uma escalada de violência que até hoje aterroriza os palestinos das colinas de Masafer-Yatta.

As crianças daquelas comunidades, como Ali e Sami, foram os primeiros a sentir. “Nós perdemos a estrada entre as duas vilas. Nós tínhamos que andar vinte minutos para ir para a escola. Depois que foi construído, o trajeto passou a ser de mais de uma hora”, lembrou Ali. “Em 2004 foi meu primeiro ano no colégio. No nosso segundo dia de aula fomos atacados.”

Episódios como esse se tornaram tão frequentes que Israel determinou que os próprios soldados escoltassem as crianças para o colégio. “Ficamos dependendo do bom humor da tropa. Eles atrasavam muito, às vezes sequer apareciam. Uma vez, depois de esperar por quatro horas — eu, meu primo e a irmã dele partimos sozinhos pelo trajeto de 10 km. Era para ser um caminho mais seguro, mas alguns colonos começaram a nos seguir e nos perturbar, então decidimos correr. A menina que estava com a gente tropeçou e quebrou a mão e o nariz. Foi desesperador”, lembrou Ali.

As recordações das experiências da época do colégio levaram jovens do Sumud a escoltar as crianças de suas comunidades. Passaram também a acompanhar as famílias nos rebanhos, nas plantações e na reestruturação das cavernas. “As pessoas têm medo de serem presas ou atacadas enquanto trabalham suas terras. Então nós as acompanhamos e acabamos as ajudando no trabalho também”, conta Sami.

Não demorou até que o grupo se tornasse alvo preferencial dos colonos da região. E os casos de violência vão se acumulando — foram dezenas de episódios de violência entre o atropelamento de Sami, em 2018, e o atentado a Zacarias Adra, baleado no estômago no início do mês passado.

A justiça também está na cola dos garotos. Em agosto de 2023, Sami foi condenado pela participação nos atos em Al-Arakiz, ocasião em que Harun foi baleado. A decisão saiu poucos meses depois do falecimento do jovem, que resistiu por dois anos às sequelas do tiro. Hoje, Sami ainda espera uma decisão sobre a pena que lhe será imposta.

A justiça está no encalço dos rapazes. Em agosto de 2023, Sami foi condenado pela participação nos atos em Al-Arakiz _ Iuri Barcelos/Agência Pública

“A gente fica se perguntando por que isso está acontecendo com a gente. Por que estão nos atacando, nos tirando das nossas terras? Você não precisa de um mestrado em direitos humanos para entender as violações que acontecem aqui”, provoca Sami. Se a angústia parece só aumentar, a convicção sobre o caminho a ser trilhado nunca esteve tão claro. Eles enxergam a resistência pacífica como a única maneira de seguir adiante. “Mesmo se a gente não conseguir acabar com a ocupação militar, que pelo menos a gente possa ajudar nosso povo a viver em condições melhores.”

Licença Creative Commons

Este artigo foi originalmente publicado no site da Agência Pública e republicado na íntegra n'o largo. ao abrigo da licença Creative Commons CC BY-ND 4.0.

08.11.23

“Carros elétricos não são a solução para a transição energética”, diz investigador

Peter Norton, autor do livro “Autonorama”, questiona o marketing das construtoras de automóveis e a


por Agência Pública

Ingrid Veloso/Agência Pública

Esta é uma republicação integral em português do Brasil de um artigo da autoria de Gabriel Gama e disponibilizado originalmente no site da Agência Pública.

Em viagem ao Brasil para o lançamento de seu livro “Autonorama: uma história sobre carros inteligentes, ilusões tecnológicas e outras trapaças da indústria automotiva” (Autonomia Literária e Fundação Rosa Luxemburgo) [Nota da Redação: à data da publicação deste artigo, o livro ainda não estava disponível em Portugal], o historiador da tecnologia Peter Norton concedeu entrevista para a Agência Pública e explicou porque não enxerga os carros elétricos como uma solução para a transição energética.

Professor da Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos, Norton é reconhecido por pesquisas sobre a história dos carros e o lobby da indústria automobilística. Sua publicação mais recente trata sobre a ilusão de que os carros elétricos e autônomos resolverão os problemas de mobilidade urbana.

“Os carros elétricos são uma distração. Eles divergem nossa atenção das coisas que realmente funcionam. Não quero dizer que a eletrificação não é necessária, ela é. O problema é a forma como ela está sendo apresentada, como se fosse uma solução milagrosa”, explica o historiador à Pública.

Norton defende que, quanto mais uma nação é dependente dos automóveis, mais difícil é resistir a eles. “É um paradoxo, porque são justamente os países mais dependentes de carros que precisam implementar mudanças com urgência.”

Em sua visão, os carros elétricos precisam ser problematizados. “Quando pensamos em veículos elétricos, a primeira coisa que vem à cabeça é um SUV movido a bateria, que é o pior tipo possível de veículo elétrico. Por que não pensamos em bicicletas, bondes2 ou trens elétricos?”, provoca.

O pesquisador pondera que a eletrificação dos carros pode ser útil, mas não deve ser encarada como uma solução definitiva, especialmente se considerados os impactos negativos da exploração de minérios para fabricação de baterias em países do terceiro mundo. “O Sul Global deve se unir em protesto contra esses esforços abusivos, até mesmo envolvendo a ONU e o julgamento das possíveis contribuições dos países ricos para o desastre climático, a destruição ambiental e a violação de direitos humanos.”

Confira a entrevista completa.

Agência Pública: O que são “futuramas” e por que o livro se chama “Autonorama”?

Peter Norton: Há cerca de 100 anos, a General Motors descobriu uma maneira de vender muito mais carros do que a Ford já havia vendido. A estratégia era comercializar não só para consumidores individuais e reforçar a atração da posse de um carro, mas também vender futuros na forma de promessas, normalmente situados dali a 20 anos. Futuros em que as pessoas dirigiam para todos os lugares sem qualquer atraso e com estacionamento grátis. É um futuro impossível, não podemos redesenhar as cidades para tornar isso possível.
É exatamente nesse ponto que a venda de futuros se tornou vantajosa, porque enquanto o futuro não chega, ninguém pode dizer que é impossível. A General Motors introduziu o termo em 1938 e chamou essa técnica de “futurama”, a combinação de futuro e diorama, palavra grega que significa apresentação. Futurama é uma maneira de vender o futuro tornando-o visível na forma de um modelo de transporte. Como a dependência dos carros não funciona, o conceito de futurama falhou.
Em 1964, a GM tentou de novo e anunciou o segundo futurama para restaurar sua credibilidade: a promessa da vez eram os transistores elétricos, que estavam bombando na década de 1960. É claro, os transistores não resolvem o problema da dependência dos carros, mas esse não é o ponto: a tecnologia é tão fantástica que, por si só, consegue persuadir as pessoas a acreditar no impossível.
O terceiro futurama, dos anos 1980, envolveu os microprocessadores, com rodovias inteligentes e redes de circuitos integrados – tudo isso também falhou.
Só nos Estados Unidos, foram bilhões de dólares jogados fora. Toda vez que uma promessa de futurama falha, outras são inventadas, e cada uma envolve as melhores tecnologias de ponta da sua época. Hoje, a promessa é o carro elétrico, supostamente autônomo, por isso a palavra “autonorama”. Na verdade, um carro não tem nada de autônomo, segue padrões já estabelecidos e gera dependência.

Agência Pública: No livro, o senhor diz que os carros elétricos não são a solução para a transição energética. Por quê?

Peter Norton: Eu diria que é pior do que eles não serem uma solução, os carros elétricos são uma distração. Eles divergem nossa atenção das coisas que realmente funcionam. Não quero dizer que a eletrificação não é necessária, ela é. O problema é a forma como ela está sendo apresentada, como se fosse uma solução milagrosa.
Carros como os SUV’s precisam de baterias que pesam 500kg, um modo de locomoção que só é viável para atender 1 ou 2% da população mundial. Isso com o enorme custo ecológico da destruição causada pela mineração e todas as catástrofes relacionadas. Temos outras excelentes possibilidades, mas elas não são adotadas, porque há muito dinheiro envolvido em promessas de coisas que não funcionam, mas podem milagrosamente funcionar graças à “mágica da tecnologia”.
Se uma empresa quer ganhar dinheiro, ela não pode dizer isso para as pessoas que desejam comprar seus produtos. Em vez disso, ela pode dizer que seus produtos salvam o planeta, e nesse caso os alvos não são somente compradores individuais, mas também governos que criam políticas e subsidiam baterias de carros elétricos, baseados na premissa de que eles são uma solução. As empresas influenciam as decisões dos governos para aumentar suas vendas. Essa distração funciona, é efetiva. As companhias são inteligentes em mostrar visões de futuro que pareçam atraentes e com credibilidade, embora nunca sejam alcançadas.
Uma das vantagens que as empresas têm sobre nós é que nossa memória coletiva é muito curta. Todo mundo aprende a não encostar em um ferro quente, depois de uma experiência traumática com isso – nossa memória individual é boa. Porém, falhamos na memória coletiva. Quase ninguém sabe que as promessas de que a tecnologia fará com que a dependência do carro funcione são apresentadas para nós há pelo menos 90 anos. Nunca funcionou e nunca funcionará, porque a tecnologia não pode fazer funcionar a dependência do carro.

Agência Pública: Então o problema está na dependência do carro em si, e não na fonte de energia usada para fazê-lo funcionar?

Peter Norton: Os automóveis são úteis para alguns objetivos, mas nem tanto para outros. Por exemplo, uma chave de fenda é boa para apertar parafusos, mas não para martelar um prego. Os carros podem ser ferramentas interessantes para alguns propósitos, o problema é que as indústrias persuadiram governos e consumidores a enxergá-los como a solução para todas as situações.
Ao redor do mundo, a distinção entre decisões de governos e de empresas se confunde, porque as corporações usam seus recursos para influenciar políticas públicas – elas fazem uma pressão mais eficiente sobre os governantes do que os próprios eleitores. A população ainda pode cobrar e pressionar pela redução dessa influência, mas o maior desafio é convencer as pessoas de que a dependência dos carros é opressiva, e não libertadora. Quando vivemos em um mundo em que ter um carro é uma necessidade para ir até o trabalho, qualquer possível restrição ao seu uso é entendida como uma ameaça. Enfrentamos uma grande dificuldade em mostrar para as pessoas que existe um futuro mais libertador para além da dependência dos carros.

Agência Pública: O senhor acredita que essa visão idealizada sobre os carros está ligada a menores investimentos em transporte público?

Peter Norton: Certamente sim. Muitos especialistas dizem que não injetamos tanto dinheiro em transportes públicos porque as pessoas preferem se locomover em automóveis — é a interpretação que eles têm principalmente em regiões dos Estados Unidos, o país com a maior dependência de carros da Terra. Essa é uma maneira estúpida de interpretar os dados, dirigir em locais sem outra opção a não ser os carros não significa que as pessoas preferem dirigir.
Quanto mais um país é dependente dos carros, mais difícil é resistir a eles. É um paradoxo, porque são justamente os países mais dependentes de carros que precisam implementar mudanças com urgência.

Agência Pública: Na edição brasileira, o senhor escreve: “Com ciência contratada, [as indústrias automobilísticas] constroem muros de autoridade para proteger suas promessas das perguntas difíceis que devemos fazer a qualquer inovação”. Por que é importante questionar as inovações?

Peter Norton: É interessante observar que, quando pensamos em veículos elétricos, a primeira coisa que vem à cabeça é um SUV com bateria, que é o pior tipo possível de veículo elétrico. Por que não pensamos em bicicletas, bondes ou trens elétricos?
As empresas que querem vender automóveis e emplacar a dependência dos carros são inteligentes. Elas aprenderam que se conseguirem associar seus produtos com a tecnologia mais impressionante e incrível disponível, a tecnologia vai trabalhar para persuadir as pessoas a comprar o que quer que esteja à venda.
O escritor de ficção científica Arthur C. Clarke dizia que “qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”. Isso é verdade, as tecnologias têm o poder de tornar o impossível possível. E deve ser sempre a última versão, a mais nova, a mais impressionante. Se as empresas associarem os carros robóticos com novas tecnologias, isso dá a elas a vantagem de dizer que o impossível é agora possível.
Isso gera um desperdício imenso de recursos, cerca de 200 bilhões de dólares foram gastos com o desenvolvimento de carros robóticos que nós não precisamos e não funcionam para atender a maioria da população, são caros demais e impraticáveis. É uma tendência que desvia recursos e atenção, criando credibilidade quando ela não está garantida. Só piora nossos problemas, tirando dinheiro de pesquisas em coisas que funcionam.

Agência Pública: Os carros elétricos são anunciados como uma solução para as mudanças climáticas e a redução de emissões de gases do efeito estufa. Como o senhor explicaria os problemas que eles podem causar para alguém que só enxerga o lado positivo?

Peter Norton: Eles são uma solução até certo ponto, mas não resolvem todos os problemas. Eu diria que os carros elétricos movidos a baterias são úteis, porque podem contribuir para melhorar o cenário. Mas não podemos chamá-los de solução, porque isso implicaria resolver todos os problemas e não fazer qualquer crítica a eles. Reconhecê-los como úteis é também reconhecer que podemos ir além deles.
Quando vejo uma propaganda desses veículos no meu país, quase sempre é um enorme SUV com uma bateria que pesa pelo menos 500kg e trabalha para locomover uma única pessoa. Cerca de 97% da energia elétrica da bateria é usada para mover o veículo e a bateria, e apenas 2 ou 3% são usados efetivamente para mover a pessoa que está dentro do automóvel. Só isso já pode ser um fator de desconfiança sobre os carros elétricos, mas fica ainda pior quando entendemos que o marketing desses veículos presume que os minérios necessários para o funcionamento das baterias, como níquel, cobre, lítio, cobalto e manganês, serão suficientes.
Se cada norte-americano dirigir um SUV movido a uma bateria de meia tonelada, isso envolverá a destruição do Sul Global: devastação do norte do Chile com a mineração de cobre, da República Democrática do Congo com a exploração de cobalto, e até mesmo de regiões do Brasil, onde as empresas já estão em busca de novas reservas de lítio. O Brasil tem um motivo ainda mais forte do que os Estados Unidos, Europa e China para questionar o futuro prometido com os carros elétricos, porque essas promessas só são possíveis às custas do Sul Global.
Durante a minha época de universidade, eu ouvia colegas da escola de engenharia dizerem coisas como “nós temos que aceitar a existência de zonas de sacrifício para realizar a transição energética”. Em outras palavras, áreas que desistimos de proteger e apenas destruímos para conquistar minérios. Como esse discurso parte de pessoas vivendo em um país [os Estados Unidos] cujas regras ambientais restringem a mineração de metais raros, é lógico que essas “zonas de sacrifício” ocorrerão em países distantes e com mercados que mal podem comprar carros elétricos. O Sul Global deve se unir em protesto contra esses esforços abusivos, até mesmo envolvendo a ONU e o julgamento das possíveis contribuições dos países ricos para o desastre climático, a destruição ambiental e a violação de direitos humanos.

Agência Pública: Se os carros elétricos não são a solução, onde devemos apostar nossos esforços?

Peter Norton: Os carros elétricos são úteis, mas não são a solução para a transição energética, assim como bicicletas, ônibus e trens não são soluções. Tudo depende do objetivo que pretendemos alcançar, e só depois de refletir sobre isso é que podemos decidir qual a melhor ferramenta para atendê-los.
A boa notícia é que temos uma grande caixa de ferramentas com várias opções ao nosso dispor. Porém, a maioria dos outros meios de transporte além do carro são negligenciados, porque não geram tantos lucros quanto a indústria automobilística.
Existe um conceito chamado pirâmide da mobilidade, que tem um topo, simbolizado pelos meios de transporte que devemos privilegiar, e uma base, onde estão as coisas menos importantes. Atualmente, no topo estão os carros e na base os pedestres; no meio dos dois, há o transporte público e as bicicletas. Essa é a pirâmide que herdamos nas últimas décadas, mas podemos invertê-la, colocando os pedestres no topo e os carros na base. A ordem de prioridade deve ser: pedestres primeiro, em segundo bicicletas (incluindo elétricas), depois outros tipos de micro mobilidade, seguidos por bondes, ônibus e trens elétricos e, por fim, os carros.

Agência Pública: Recentemente foram instalados semáforos inteligentes na cidade de São Paulo, que analisam o fluxo de carros e calibram o tempo de abertura e fechamento dos sinais para otimizar o trânsito. Qual sua análise sobre esse tipo de tecnologia?

Peter Norton: Os primeiros semáforos sincronizados da história, não por sensores digitais mas sim por aparatos mecânicos, datam de 1926, em Chicago. Eles eram sincronizados de tal maneira que os condutores que dirigissem a uma certa velocidade passavam por sinais verdes um atrás do outro.
Costumamos nos perguntar se as tecnologias funcionam ou não, mas o problema é que elas funcionam às custas de outros fatores que não valorizamos, tirando poderes de um grupo e dando para outro. O que aconteceu em Chicago naquela época foi o mesmo que está acontecendo agora em São Paulo: os semáforos podem ser calibrados para favorecer os carros, os pedestres ou outros propósitos. E isso determina quem leva vantagem e quem se prejudica.
Então, os semáforos inteligentes podem ser úteis, desde que valorizem os pedestres, ainda mais em uma cidade enorme como São Paulo. Temos vários motivos para favorecer os pedestres, mas se for feito o contrário, perde o sentido. No fim das contas, é o poder que determina isso.

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Este artigo foi originalmente publicado no site da Agência Pública e republicado na íntegra n'o largo. ao abrigo da licença Creative Commons CC BY-ND 4.0.