Este artigo é uma tradução para português de Portugal dum artigo em inglês da Radio Free Europe/Radio Liberty (RFE/RL).
Susan Glasser é uma antiga jornalista e editora estadunidense e coautora do livro de 2005 “Kremlin Rising: Vladimir Putin’s Russia And The End Of Revolution”. O seu trabalho no estrangeiro incluiu a cobertura das guerras do Iraque e do Afeganistão e quatro anos como chefe adjunta da redação em Moscovo do The Washington Post.
É colaboradora e colunista da revista The New Yorker e, com o marido Peter Baker, foi coautora de um livro em 2022 intitulado “The Divider: Trump In The White House”, que criticava fortemente o ex-presidente dos EUA Donald Trump.
Glasser esteve à conversou com o serviço em georgiano da RFE/RL sobre a evolução de Vladimir Putin do “incrementalismo” para o “messianismo”, o autoritarismo e o “rio russo” na história, e Putin e a guerra da Ucrânia no contexto das eleições americanas que se aproximam.
RFE/RL: A primeira pergunta, e praticamente a maioria das perguntas, será sobre o homem de Moscovo que estudou e sobre o qual fez reportagens durante anos. Ainda há momentos em que ele o surpreende ou faz algo que não estava à espera?
Susan Glasser: Eu diria que, pelo facto de termos sido avisados previamente, de uma forma tão explícita, para a preparação e a invasão em grande escala da Ucrânia, não posso dizer que tenha sido uma surpresa. Mas não deixa de ser uma decisão chocante, especialmente porque foi extremamente arriscada. Algumas pessoas viam Vladimir Putin como sendo um incrementalista, certamente agressivo, mas cuidadoso. E pode dizer-se que a invasão da Ucrânia não foi certamente incremental, exceto talvez por uma lógica absurda.
Penso que Putin, em termos gerais, surpreendeu-nos a todos. Não nos podemos esquecer que, há 20 anos, se estivéssemos a ter esta conversa e disséssemos “Bem, ele vai tornar-se o líder mais antigo da Rússia desde Josef Estaline, vai invadir não um, mas dois dos seus vizinhos, vai forjar uma nova aliança com a China que terá uma ‘parceria sem limites’ como definição dessa aliança”, teríamos ficado chocados. Não estava no horizonte das possibilidades. Assim, em termos gerais, eu diria que Vladimir Putin nos surpreendeu a todos, na verdade…
Penso que ele parece ter-se tornado talvez mais messiânico, mais envolvido na sua própria visão de um poder personalizado ao longo dos 20 anos em que está no cargo. Isso não é surpreendente – já aconteceu em muitas ditaduras – mas parece que Putin se vê agora como uma espécie de herdeiro dos czares.
RFE/RL: Há uma espécie de pensamento “O Estado sou eu!” por detrás disso?
Glasser: Sim. O culto do líder é algo com que ele teria crescido na União Soviética até certo momento. Ele está claramente mais no molde dos primeiros líderes da União Soviética – os Lenines e os Estalines – do que no molde da liderança coletiva dos últimos tempos da União Soviética. Sempre pensei que ele se via a si próprio como uma espécie de sucessor do líder do KGB que se tornou um dos últimos líderes da União Soviética, Yury Andropov, e que se via a si próprio…

RFE/RL: A conseguir o que Andropov não conseguiu?
Glasser: Exatamente. Pois Andropov morreu demasiado cedo e foi sucedido por [Mikhail] Gorbachev, que obviamente não é um herói para Vladimir Putin.
RFE/RL: Em que medida é que Putin personifica a Rússia moderna? Ele moldou o Estado à sua imagem ou foi a Rússia que o moldou, de acordo com uma exigência popular ou algo como um sentimento nacional do que a Rússia queria ser?
Glasser: É muito interessante porque eu estava em Moscovo nos primeiros anos do mandato de Putin como líder, os primeiros quatro anos, e lembro-me de ter entrevistado uma vez um dos responsáveis pelas sondagens que trabalhava para Putin – Aleksandr Aslund – quando ele foi eleito presidente russo. E Aslund disse: “Sabes,… os anos de [Boris] Iéltsin1primeiro presidente russo após a queda da União Soviética, esta ideia de democracia na Rússia, foi como pôr uma barragem num rio e, eventualmente, o rio transborda e volta ao seu curso natural”.
Por isso, ele e aqueles que ajudaram a criar Putin consideraram-no, de certa forma, como sendo simplesmente uma parte da inevitável restauração do rio russo que fluía na direção que pretendia. E penso que, para ele, a ideia era de que Putin poderia ter sido qualquer pessoa, de facto; que Putin era simplesmente a manifestação natural e lógica de um regresso a um Estado mais autoritário.
Não sei o que ele diria hoje e essa é uma questão interessante porque penso que muitos russos, e não apenas os ocidentais, foram enganados por Putin nos primeiros anos. Na altura, ainda se usavam palavras como “democracia” na Rússia. No primeiro discurso inaugural de Putin, essa foi uma palavra que ele usou. Já não a utilizava no segundo discurso inaugural; o rio estava a voltar ao seu curso. Penso que os historiadores irão analisar a forma como Putin moldou esse curso durante muitos e muitos anos.
RFE/RL: O consenso atualmente existente entre os analistas é que Putin calculou mal quando iniciou a guerra. Será que tudo o que antecedeu esta [invasão] não foi suficientemente convincente para o empurrar nessa direção? Ouvimo-lo muitas vezes ser comparado a um jogador de póquer, certo? Ele tem uma mão perfeita: porque não fazer “all-in”?
Glasser: Quando se fala do erro de cálculo de Putin, penso que, antes de mais, se pode dizer que o seu plano de guerra foi um terrível erro de cálculo. Portanto, são duas questões distintas, certo? De certa forma, podemos questionar: “Foi lógico, segundo a lógica de Putin, embarcar nisto?” Que ele pensou que era a altura certa e que o Ocidente não iria reagir agressivamente ou que seriam sanções, uma reguada nas mãos e que ele conseguiria resistir, especialmente com a sua nova parceria com a China? Penso que sim, que se pode dizer que há uma história de 15 a 20 anos em que o Ocidente cedeu aos excessos de Putin – nunca quis provocar uma confrontação em grande escala, sendo muitas vezes o jogador que recuou – e que, por isso, ele podia razoavelmente esperar que isso voltasse a acontecer.
Penso que se pode dizer que ele não só calculou mal como o fez de forma desastrosa na guerra: a forma como decidiu levar a cabo esta guerra na Ucrânia, invadindo o país com um número insuficiente de pessoas para atingir os seus objetivos militares, tendo essencialmente um plano de medo e choque para chegar rapidamente em Kyiv e derrubar o governo de [Volodymyr] Zelensky, e depois parecendo não ter qualquer plano B quando esse plano não foi bem-sucedido, e não foi bem sucedido, é notável.
É evidente que também estava mal informado ou tinha uma péssima noção da própria Ucrânia e do que a população faria. Penso que eles estavam claramente à espera de que houvesse um segmento muito maior da população que apoiasse a Rússia do que acabou por acontecer, mesmo entre os povos de língua russa do leste da Ucrânia.
Esse é o ponto número 1. Geopoliticamente é uma grande estupidez, certo? Não há outra forma de o pensar. Se dissesse a Putin “Bem,… em primeiro lugar, a consequência da vossa guerra será unificar o povo ucraniano de uma forma massiva numa linha de ação decisivamente antirrussa e pró-ocidenta; em segundo lugar, assegurarão que a Finlândia e a Suécia sejam membros permanentes da OTAN2Organização do Tratado do Atlântico Norte, comummente conhecida como NATO e terão acrescentado qualquer coisa como 1600 quilómetros de fronteira direta entre a Rússia e a NATO”, isso, num qualquer esforço de imaginação, seria suficiente para o chocar. Ele pensou que tinha mais ou menos comprado a Alemanha e não comprou.
E, honestamente, penso que algo que ele não esperava era que os Estados Unidos reagissem da forma como o fizeram. Ele fez uma avaliação errada do [presidente dos EUA] Joe Biden. Na escola costumávamos dizer: sabemos que estamos em apuros quando mentimos a nós próprios e acreditamos nisso. E parece-me que, até certo ponto, Putin pode ter sido um pouco vítima da sua própria propaganda sobre o Ocidente e sobre os Estados Unidos em que ele não deveria ter acreditado.
RFE/RL: Vê o fim do Putinismo por causas naturais?
Glasser: A metáfora “gradualmente e repentinamente” de [Ernest] Hemingway é frequentemente utilizada e penso que é uma metáfora justa. Se me dissesse amanhã que tinha acontecido uma coisa louca e que Putin tinha desaparecido, seria plausível ecredível. Não é certamente algo que nos deixaria totalmente atónitos. Mas, ao mesmo tempo, parece-me que a história aqui é que restam muito poucos centros de poder dentro da Rússia, exceto os militares e os serviços de segurança, que poderiam potencialmente depor Vladimir Putin. Uma das consequências, pelo menos a curto prazo, desta invasão da Ucrânia foi, de facto, o aumento do nível de repressão e a eliminação das possibilidades de oposição dentro do sistema russo…
RFE/RL: O fim de Putin não significa necessariamente o fim do Putinismo.
Glasser: Preocupa-me que isso seja quase mais um exemplo de um “wishful thinking”. Quando se tem uma sociedade que, durante 20 anos, tem sido um sistema desenvolvido e que tem funcionado ao longo do tempo com base em temas e tradições que vêm de longe… estamos a falar de… milhões de russos que participam nesse sistema. Esta pode ser uma guerra lançada por Vladimir Putin, mas Vladimir Putin não é a pessoa que conduziu pessoalmente as atrocidades em Bucha; não é a pessoa que está a cometer crimes de guerra e violações dos direitos humanos. Ele pode ser responsável por uma estratégia de ataque às infraestruturas civis da Ucrânia, mas não é ele que pilota os aviões, não é ele que lança os mísseis, não é ele que faz isso pessoalmente.
Milhões e milhões de russos estão a participar nisto, como na Primeira Guerra Mundial. E Putin invocou de forma interessante a Primeira Guerra Mundial durante o muito curto motim de Prigozhin [quando o líder do grupo mercenário Wagner Yevgeny Prigozhin liderou uma breve revolta em junho]. Putin fez um discurso verdadeiramente notável, um discurso extraordinário, admitindo fraqueza de uma forma que nunca tínhamos visto Putin fazer antes. Mas invocou o fantasma da Primeira Guerra Mundial, quando milhares e milhares de soldados russos depuseram as armas e se recusaram a continuar a lutar pelo czar no Ocidente. E isso não aconteceu. Os soldados russos podiam depor as armas, podiam recusar-se a travar uma guerra ilegal de agressão contra os seus vizinhos, e não o estão a fazer. Por isso, não, acho que essa ideia de que vai haver o fim do Putinismo… não acredito nisso.

RFE/RL: Antes de falar sobre Trump, deixe-me perguntar-lhe sobre as próximas eleições nos EUA. Em termos gerais, o que é que está em jogo para Kyiv nestas eleições?
Glasser: Diria que o destino da guerra na Ucrânia depende, em parte, do que acontecer nas eleições de 2024. E digo isto porque é muito provável que Donald Trump venha a ser o candidato republicano. E mesmo que ele não seja o candidato republicano, há vários outros candidatos que também não estão a apoiar a Ucrânia na guerra contra a Rússia e, certamente, não estão a apoiar a continuação de assistência militar de milhares e milhares de milhões de dólares dos EUA aos ucranianos. Por isso, sim, a Ucrânia está nas urnas no próximo ano nos Estados Unidos.
RFE/RL: Há uma frase de Trump que me está na memória, a de que iria acabar com a guerra na Ucrânia num dia. Como é que ele iria fazer isso?
Glasser: Bem,… Trump exagera e exagera muito no que diz. Tal como o México não pagou o seu muro na fronteira sul dos EUA, é provavelmente bastante claro que ele não acabaria com a guerra na Ucrânia em 24 horas – a não ser que telefonasse a Vladimir Putin e dissesse: “Não se preocupe que estamos a retirar todo o nosso apoio”.
Seria um dia extremamente difícil para a Ucrânia. E sabe,… mesmo durante a sua presidência, no primeiro mandato,… Donald Trump chegou ao cargo e disse que queria fazer o seu próprio “reset” com a Rússia, que queria fazer um acordo com Vladimir Putin.
Ele aceitou publicamente a propaganda russa de que a Ucrânia não é essencialmente um país real, que a Crimeia nunca foi ucraniana e que deve pertencer à Rússia e, no entanto, curiosamente, havia suficientes membros do Partido Republicano ainda no Capitólio, bem como dentro do seu próprio governo, que não concordavam com Trump em relação à Rússia. E esta é uma matéria em que eles foram mais ou menos bem-sucedidos a restringi-lo.
Ele não foi politicamente capaz de levar a cabo a sua política de “reset”, o seu acordo com Vladimir Putin. Pensou em levantar as sanções dos EUA à Rússia, mas não foi capaz de o fazer. Não estava claramente muito entusiasmado com o apoio à Ucrânia através de assistência militar e, no entanto, foi em frente e assinou-o – com relutância – quando o Congresso dos EUA, tanto democratas como republicanos, apoiaram [essa assistência].
Este foi, de facto, um exemplo no mandato de Trump em que a política nos Estados Unidos, bem como algumas das pessoas da sua própria administração, o limitaram e impediram. E penso que uma das coisas mais preocupantes sobre a possibilidade de Trump voltar ao poder nos EUA é que ele certamente se esforçaria muito para não ter pessoas como essas no seu próprio governo. E isso seria uma grande mudança em relação ao primeiro mandato de Trump.
RFE/RL: Tendo isso em mente, se isso realmente acontecer, e se Trump [for eleito e for capaz de] acabar com a guerra nos seus termos, ele seria capaz de vender isso aos Estados Unidos como uma espécie de sucesso? Os Estados Unidos acreditariam nisso?
Glasser: Bem,… estamos a ter uma conversa hipotética de qualquer forma… As sondagens são claras: os americanos apoiam a Ucrânia. Isto é, republicanos e democratas. Penso que estamos a assistir a uma diminuição gradual do apoio, em particular entre os republicanos, para continuar a enviar grandes quantidades de assistência militar à Ucrânia. Mas isso é diferente de dizer “não apoiamos a Ucrânia e queremos que eles percam a guerra”.
Penso que os americanos apoiam a Ucrânia e muito. Está incorporado no nosso ADN nacional e penso que nem mesmo Donald Trump pode impedir os americanos de se identificarem com um país cuja liberdade foi posta em causa por um agressor absoluto. E a imagem de tanques a atravessar a fronteira [ucraniana] sem serem provocados é algo [que faz com que] não esteja a ver os americanos a desviarem a sua lealdade e apoio da Ucrânia.
Mas estes são realmente tempos sem precedentes na nossa política, devo dizer, e se me dissessem há 20 anos que não só Vladimir Putin ainda estaria no poder, mas que nos Estados Unidos teríamos um líder do Partido Republicano que era um admirador aberto de Vladimir Putin e de outros ditadores em todo o mundo, eu não teria acreditado.
RFE/RL: Se o seu livro servir de referência, essa admiração era muito unilateral.
Glasser: Sabe, há algumas histórias engraçadas nas nossas reportagens que ouvimos de pessoas sobre Putin e Trump; e realmente parecia que Vladimir Putin poderia ter visto alguma vantagem em Donald Trump. Mas ele também tinha uma visão clara da natureza de Trump. E há uma grande cena no último encontro entre os dois, que ocorreu no verão de 2019, à margem [da cimeira] do G20. Putin e Trump estão reunidos e Trump está a gabar-se e a fazer grandes afirmações e dizer “Bem, Vladimir,… sabes, vão mudar o nome de um forte na Polónia para Trump e vão dar o meu nome a uma povoação em Israel nos Montes Golã 3região síria ocupada por Israel [e] vão chamá-la de Montes Trump”. E Putin, de acordo com duas fontes com quem falámos e que testemunharam isto, olhou para Trump e disse: “Bem, Donald,… talvez devessem apenas dar o teu nome a todo o Israel”.

RFE/RL: Porque é que acha que Putin não retribuiu? Porque é que ele não se deixou acariciar pelo ego, como fizeram tantos outros líderes mundiais?
Glasser: Essa é uma pergunta interessante. É certo que muitos líderes mundiais compreenderam a necessidade de Trump de ser lisonjeado e que isso seria eficaz. Provavelmente o primeiro a fazê-lo foi Shinzo Abe, que, na altura, era o primeiro-ministro japonês. Viajou de avião para ver Donald Trump ainda antes da tomada de posse na Casa Branca, o que constitui uma grande quebra da tradição. Jogou golfe com Trump em Mar-a-Lago. Muitas outras pessoas tentaram dar graxa a Donald Trump…
RFE/RL: Mas, claramente, Putin não o fez.
Glasser: Não, Putin não o fez. E voltemos àquela imagem espantosa em Helsínquia e à infame conferência de imprensa que deram juntos. A imagem é bastante notável, porque não é Putin que está ali a sorrir e a gracejar enquanto Donald Trump está a acreditar na sua palavra em vez da de 17 agências de informação dos EUA. Putin parece a fazer uma espécie de escárnio a Trump, parece quase desdenhar dele. E é muito interessante que ele nem sequer tenha escondido isso.
Penso que outros líderes mundiais, mesmo adversários ou potências rivais, não gostaram da volatilidade de Trump, não gostaram do facto de ele ser tão imprevisível que fez com que a maior superpotência do mundo, os Estados Unidos, se tornasse um fator de instabilidade no mundo. O sistema mundial, e mesmo os líderes de Estados autoritários como a China e a Rússia, gostam de estabilidade. E Donald Trump era muito imprevisível.
Esta entrevista foi editada para melhor clareza e espaço
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