Explicando o “antissemitismo ucraniano” e a diplomacia do Holocausto

A história judaica ucraniana tornou-se um novo instrumento de relações externas
Presidente da Ucrânia (https://www.president.gov.ua/) CC BY-NC-ND 4.0
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Para marcar o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto a 27 de janeiro, o grupo coral das Forças Armadas ucranianas divulgou um vídeo no YouTube mostrando militares ucranianos tocando uma música hebraica no local de um dos maiores massacres do Holocausto na Europa, que, desde então, foi transformado num memorial. O vídeo apresenta uma mistura complexa de símbolos: por um momento, a câmara centra-se numa das insígnias do artista mostrando o Tamga, o brasão tártaro da Crimeia, ao lado de um Tridente, um dos símbolos do Estado ucraniano.  Este vídeo surge contra a alegação de Moscovo de que a Rússia atacou a Ucrânia para “desnazificar” o país.

O simbolismo do vídeo é grande: a canção, “A Walk To Caesarea” (1942), foi escrita por Hannah Szenes (Senesh), uma poetisa húngaro-israelita e agente da resistência que trabalhava contra os nazis e que foi capturada e morta em 1944 em Budapeste aos 23 anos.  A canção está associada ao Dia Nacional da Memória das Vítimas do Holocausto de Israel e é cantada anualmente, algo que insinua que os autores do videoclipe pretendem direcionar a sua mensagem para um público internacional.

O vídeo foi filmado em Babyn Yar, um local tristemente célebre do genocídio em Kyiv.  Milhares de judeus e ciganos foram assassinados neste local por nazis e deixados em desfiladeiros, juntamente com prisioneiros de guerra soviéticos, nacionalistas ucranianos e, ocasionalmente, colaboradores nazistas, muitas vezes acusados de serem os próprios perpetradores do Holocausto. Babyn Yar tem os seus próprios dois dias da Memória, 29 e 30 de setembro, nos quais os cidadãos choram os cerca de 33 770 judeus mortos no local.

Dada a invasão em curso da Rússia na Ucrânia, assinalar este dia e a história da comunidade judaica ucraniana foi particularmente importante em 2022 e 2023.  Disputas internas e antagonismos foram deixados de lado, à medida que instituições e grupos abordavam juntos as suas tristezas sobre a guerra atual, em vez dos terrores do passado.

Zelensky: em busca dum forte simbolismo

Desde 24 de fevereiro de 2022, quando Moscovo atacou a Ucrânia, Kyiv tem tentado encontrar formas de combater a propaganda russa. Uma das estratégias estatais é destacar os diferentes genocídios que ocorreram no território: entre estes, estão a fome causada por Estaline no início da década de 1930, conhecida como Holodomor, o Holocausto e a atual guerra e ocupação russa, que se acredita ter custado, até ao momento, mais de 7 mil vidas civis na Ucrânia.

Atualmente, cada discurso oficial ucraniano que menciona o extermínio de judeus liderado pelos nazis traça paralelos com as atrocidades russas na Ucrânia em 2022.

“Hoje, o mundo homenageia a memória das vítimas do Holocausto. A sua tragédia deveria ter servido de alerta para evitar novos crimes contra a humanidade. Mas hoje, bem no centro da Europa, está a acontecer um genocídio de ucranianos. Não perdoaremos nem esqueceremos nada.” Andriy Yermak (@AndriyYermak) no Twitter .

Na política internacional, é quase impensável comparar o Holocausto com outra coisa qualquer: é insensível, na melhor das hipóteses, ou igual à negação do Holocausto, no pior dos casos. Foi disso mesmo que o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky foi acusado de fazer por vários políticos israelitas após o seu discurso via Zoom para o Knesset, o parlamento israelita, no primeiro mês da invasão russa de grande escala.

Mas como o próprio Zelenski vem de uma família judia, que sofreu diretamente com os nazis, ele pode pensar que a sua história pessoal lhe dá legitimidade para traçar esse paralelo.

No entanto, não foi Zelensky quem iniciou as comparações ou que enfatizou a sua origem judaica. Logo a seguir ao ataque da Rússia à Ucrânia e assim que ficou claro que a liderança de Kyiv não iria fugir e a população iria lutar, o presidente ucraniano tornou-se um ícone para os media judaicos que o chamaram de “o Macabeus moderno” – uma referência à história da resistência judaica à opressão, incluindo a nazi. 

Embora a história judaica ucraniana tenha sido associada a discriminação e perseguição, em 2022, muitos judeus em todo o mundo redescobriram as suas raízes ucranianas com orgulho e partilharam histórias familiares sobre a opressão que enfrentaram às mãos da Rússia.

O tempo de guerra é realmente o momento para revisitar a história?

O paralelo referido acima levanta a questão das relações judaico-ucranianas, algo que continua a ser uma fonte de discórdia entre diferentes segmentos e gerações da sociedade ucraniana. A verdade é que o país ainda não reconciliou as narrativas conflitantes sobre a sua história durante o século XX com pogroms antijudaicos, as perseguições da era nazi e antissemitismo patrocinado pelos soviéticos.

Certas figuras históricas, como Bohdan KhmelnytskySymon Petliura ou Stepan Bandera, que hoje são percebidos como campeões do patriotismo ucraniano no discurso dominante, particularmente pela sua oposição ao colonialismo russo e soviético, no exterior, são geralmente associados a grandes massacres de judeus e, como tal, deixaram traços profundos na memória coletiva judaica.

Paradoxalmente, nos paralelos que fazem com a invasão russa da Ucrânia, as autoridades ucranianas, incluindo Zelensky, referem-se aos judeus que sofreram nesta área como “tu (você, vós)”, mas não “nós”.  Por exemplo, no seu discurso perante o Knesset, Zelensky disse: “Eu tenho o direito a esse paralelo e a essa comparação”, referindo-se ao Holocausto e à invasão russa da Ucrânia. E acrescentou: “A nossa história e vossa história. A nossa guerra pela nossa sobrevivência e a II Guerra Mundial”, como se os judeus nunca tivessem feito parte da sociedade local.

Desde que a Ucrânia conquistou a sua independência em 1991, os estudos judaicos e a pesquisa, educação e a lembrança do Holocausto têm florescido no país graças ao financiamento estrangeiro, mas também a iniciativas locais de base, empatia genuína e interesse na história e cultura reprimidas.

No entanto, tanto interna como internacionalmente, é a Rússia que está associada à luta contra a Alemanha nazi (internacionalmente, a antiga União Soviética é muitas vezes referida simplesmente como “Rússia”), enquanto os ucranianos ainda são amplamente vistos como colaboradores: a expressão “colaboradores ucranianos” é amplamente usada nos meios de comunicação social e na academia no discurso da história da II Guerra Mundial, o que reforça a ideia de que todos os ucranianos foram colaboradores durante a guerra. A rejeição da Ucrânia ao seu passado soviético e as atividades da Rússia de espalhar narrativas históricas contra a Ucrânia contribuíram fortemente para essa situação. Na Ucrânia moderna, os combatentes do Exército Vermelho são percebidos como ocupantes, embora centenas de milhares deles fossem ucranianos.

A publicação no Twitter de Andriy Yermak, o principal conselheiro do gabinete presidencial em questões relacionadas com a comunicação social, que traça paralelos entre o Holocausto e a invasão russa da Ucrânia, encontrou reações mistas nos seguidores.

“Também lembramos o genocídio de centenas de milhares de sírios há poucos anos” (Free Syria Media Hub (@Free_Media_Hub) no Twitter

Outro seguidor escreveu:

“É só muito mau traçar paralelos entre o Holocausto e a guerra na Ucrânia.” Anna Tema (@Anatema0) no Twitter

Houve tentativas de rever e reavaliar figuras e formações históricas como Stepan Bandera e a Organização dos Nacionalistas Ucranianos. Mas a invasão russa em grande escala da Ucrânia tornou-os mais uma vez irrelevantes para muitos e tóxicos para alguns, já que a sociedade ucraniana enfrenta ataques de desinformação incessantes por parte da Rússia, mas também uma necessidade urgente de patriotismo e inspiração da história nacional.

O facto é que, hoje, a Ucrânia está entre os países menos antissemitas da Europa.

Licença Creative Commons

Este artigo, escrito por Yulia Abibok e traduzido por Doralice Silva, foi originalmente publicado no site Global Voices e republicado em português de Portugal n’o largo ao abrigo da licença Creative Commons CC BY 3.0.

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