O medo institucional de França do pluralismo linguístico: uma entrevista com o ativista linguístico Michel Feltin-Palas

A educação imersiva é a única forma de gerar novos falantes de línguas minoritárias
O medo institucional de França do pluralismo linguístico: uma entrevista com o ativista linguístico Michel Feltin-Palas
christinesmitth
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Com mais de vinte línguas regionais, a França sempre foi um país multilingue, mas o seu governo central continua relutante em reconhecer e abraçar plenamente essa diversidade. Numa entrevista com a Global Voices, o linguista e ativista Michel Feltin-Palas explica as razões desta hesitação.

Feltin-Palas é jornalista no semanário francês L’Express, onde publica uma newsletter dedicada à diversidade linguística francesa. É também autor de vários livros dedicados ao tema, incluindo o último “Sauvons les langues régionales” (em português: “Salvemos as línguas regionais”) publicado em 2022 pela editora Héliopoles, onde analisa as razões históricas e políticas apresentadas pelo governo francês para limitar o reconhecimento daquilo a que oficialmente se chama de “Langues régionales” (em português: “línguas regionais”). O livro faz referência a vinte línguas que têm sido historicamente faladas no que é hoje a França metropolitana.

Durante muito tempo, trazer o francês para áreas onde não era falado era visto como uma forma de trazer “civilização”. Nesta perspetiva, pode-se mesmo traçar um paralelo com a colonização.

Michel Feltin-Palas, linguista e ativista

Feltin-Palas revelou as origens deste medo da diversidade linguística por parte das instituições estatais francesas, particularmente no domínio da legislação e da educação:

“A França é um país que não poderia ter existido. De facto, não há nenhuma razão para que uma pessoa da Alsácia tenha um dia acabado por viver no mesmo estado que uma pessoa do País Basco, da Córsega ou de Auvergne. O poder central francês sempre teve a preocupação de que todas essas culturas diversas pudessem eventualmente fomentar o separatismo. Como resultado, foi imposta uma única língua: o francês. Quanto às culturas locais, são reduzidas ao simples folclore e proibidas nas escolas. Como escreve o historiador francês Olivier Grenouilleau no seu livro “Nos petites patries” (em português: “As nossas pequenas pátrias”), “a uniformidade é um excelente meio para liderar um país tão vasto e diversificado como a França”.

Durante muito tempo, trazer o francês para áreas onde não era falado era visto como uma forma de trazer “civilização”. Nesta perspetiva, pode-se mesmo traçar um paralelo com a colonização. Jules Ferry (primeiro-ministro francês e, mais tarde, Ministro da Educação) afirmou no parlamento francês, em 25 de Julho de 1885, que “é preciso dizer abertamente que as raças superiores têm um direito em relação às raças inferiores […] porque têm um dever. Um dever de civilizar as raças inferiores”. Assim, não é descabido considerar que a mesma visão prevaleceu em França, onde Paris, a encarnação da “civilização”, estabeleceu o “dever” de elevar as classes inferiores da mediocridade da sua “patois” através da escolaridade pública”.

Muitas destas 20 línguas têm uma rica tradição literária, tanto oral como escrita, ainda que o património continue em grande parte ausente da paisagem educativa e mesmo cultural.

A explicação é a mesma. O Estado francês tentou, através do sistema educativo, impor uma visão simples: que a França tem apenas uma cultura, a francesa, enquanto as outras são simplesmente manifestações de folclore e, portanto, sem qualquer interesse. Ensinar às crianças que existem outras literaturas não é compatível com tal conceção. Uma editora de livros escolares atraveu-se a escrever num livro que Bernat de Ventadour, um dos maiores “troubadours” (poetas que escrevem em occitano), escrevia em… “français du Sud” (em português: “francês do sul”)! E ainda… Frédéric Mistral recebeu o Nobel da literatura (em 1904]) por uma obra em provençal (uma das variantes da língua occitana). Mas ele não é ensinado nas escolas.

Muitas das “línguas regionais” contêm diferentes dialetos, e nalguns casos, diferentes ortografias, como é o caso do occitano.

A resposta é complexa. Há características comuns que ligam Provençal, Gascon, Auvergnat, Languedocien, Limousin, Vivaro-alpin (os nomes dados pelos falantes às seis variantes principais do occitano). Há também diferenças. Neste contexto, alguns preferem concentrar-se no que os une, enquanto outros se concentram no que os separa. Quanto à ortografia, existem dois grupos principais. O primeiro chama-se “ortografia clássica” e refere-se à idade de ouro da língua occitana utilizada pelos “troubadours”. Baseia-se na ortografia dessa época e tem a vantagem do prestígio, mas desvantagem da complexidade, uma vez que a pronúncia evoluiu desde a Idade Média. Os falantes atuais que não o conhecem têm, portanto, dificuldade em reconhecer a sua própria língua, e os não falantes pronunciam-na mal. O segundo grupo chama-se “ortografia Mistral” e foi estabelecida mais recentemente. A sua principal vantagem é que é mais fácil para os francófonos pronunciarem. A sua desvantagem é que está mais próxima do francês. Pessoalmente, prefiro não tomar partido nesses debates, reconhecendo ao mesmo tempo que são bastante legítimos. A minha opinião é que as pessoas que defendem essas línguas estão do mesmo lado, independentemente dos termos que utilizam, e devem permanecer unidas contra aqueles cujo objetivo é fazê-las desaparecer.

Dada a importância da nomeação, quais são, na sua opinião, os termos mais respeitosos e apropriados para aplicar ao que o Estado francês chama “línguas regionais”?

“Com base nas minhas convicções, eu falaria de línguas “históricas”, “indígenas”, “minoritárias” ou de “uso reduzido”. Mas os peritos da Internet com quem falei sobre o assunto são claros: nos motores de busca, ninguém usa tais termos. Assim, quando os utilizo em artigos, chamaria a atenção apenas das pessoas que estão familiarizadas com esses termos. Tenho um grande respeito por essas pessoas, mas o meu objetivo é sensibilizar o mais possível o público em geral. Por isso, tive de fazer uma escolha: seria mais apropriado linguisticamente manter os termos que mencionei acima, mas depois menos pessoas me leriam. Ou poderia usar o termo “línguas regionais” e divulgar mais amplamente as minhas ideias. Dado que estou interessado no impacto, decidi optar pela segunda opção. Não pretendo estar certo, mas é aqui que está o meu pensamento atual.

O poder central francês sempre teve a preocupação de que todas essas culturas diversas pudessem eventualmente fomentar o separatismo. Como resultado, foi imposta uma única língua: o francês.

Michel Feltin-Palas, linguista e ativista

Como explica o sucesso da Euskara, ou da língua basca, em comparação com outras línguas regionais francesas?

A língua basca é uma exceção: é, de facto, a única língua regional dentro da França continental onde o número de falantes tem aumentado. Isto deve-se à educação em grande escala em basco, que resultou na “produção” de falantes suficientes para substituir os mais antigos. Este sucesso é devido à mobilização da sociedade civil basca. O desenvolvimento duma língua baseia-se em três factores-chave: a densidade de falantes, o sentido de competência linguística, e a motivação de cada falante. Este último elemento é fundamental e duplo. Há um aspeto prático: uma pessoa está mais inclinada a aprender uma língua se esta lhe permitir formar-se e encontrar um emprego (por isso, muitas pessoas em França procuram aprender inglês). E um factor de identidade, ligado a um sentimento de pertença, de amor ao próprio território, ao apego que se tem à própria cultura. Do lado espanhol [da região de língua basca], estes elementos são cumulativos. Do lado francês, é principalmente o factor de identidade que domina, mas o prático está a tornar-se mais importante.

Acha que a “educação imersiva”, em que todas as disciplinas são lecionadas às crianças na sua língua regional durante os primeiros anos de escola, está finalmente a ser reconhecida pelo Estado como a única forma de promover eficazmente estas línguas?

Não há uma resposta fácil. Do ponto de vista pedagógico, é o melhor método para “produzir” bons falantes numa sociedade que é agora inteiramente francófona. Sabe-se também que os estudantes matriculados neste tipo de sistema educativo não são desfavorecidos quando se trata de francês. Bem pelo contrário: um relatório oficial do Ministério da Educação francês sobre a rede Diwan [uma rede de escolas imersivas em Brezhoneg ou bretão, uma língua celta] reconhece que os estudantes dessas escolas têm melhores resultados em francês do que os estudantes do sistema escolar regular. A escolarização por imersão representa assim o melhor meio para combinar uma educação bem-sucedida com a diversidade cultural. Infelizmente, há que lidar com a ideologia… Em Paris, instituições poderosas tais como o Ministério da Educação, o Conselho Constitucional ou o Conselho de Estado ainda consideram as línguas ditas regionais como ameaças à unidade da nação e à aprendizagem da língua francesa. Esperemos que os factos possam um dia trazer a razão a essas mentes.

Licença Creative Commons

Este artigo, escrito por Filip Noubel, foi originalmente publicado no site Global Voices Online e traduzido e publicado em português de Portugal n’o largo ao abrigo da licença Creative Commons CC BY 3.0.

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