“Deixei de ter um jornal em papel que me chegava a casa, de manhãzinha, por um estafeta que circulava numa mota relativamente potente. Já reconhecia o barulho da mota a anunciar, à minha porta, que o jornal estava prestes a ser colocado na minha caixa do correio provocando um som, agradável, também reconhecível.
Deixei de assinar a edição em papel daquele jornal (que minorou o isolamento sentido nos confinamentos mais apertados da pandemia da Covid19) quando o jornal, um título estrangeiro de referência mundial, deixou de ser entregue ao domicílio no próprio dia. Agora, quando acordo e vou ver as horas no telemóvel, caem os títulos gordos das principais notícias das minhas assinaturas digitais no próprio telemóvel.
Há dias, um dos primeiros títulos a cair falava num “ataque ao mercado”. Fui ler a correr a notícia correspondente, convencido de que seria um ataque com armas pesadas a um mercado de alguma cidade ucraniana sob a metralha do exército russo. Afinal era uma notícia sobre transferências de futebolistas – certo clube italiano estava no mercado a disputar um futebolista que também estaria na mira de um clube português.
A linguagem belicista – esquecera eu – há muito que está instalada no “futebolês”. Os pontas de lança fuzilam os guardas redes, os remates potentes que dão golo são mísseis indefensáveis e quem joga à defesa tem grande dificuldade em desarmar os atacantes. Fora das quatro linhas (ou do campo da batalha) há, ciclicamente, os chamados ataques ao mercado. Ao mercado de transferências de futebolistas, entenda-se.
Estes vícios de linguagem jornalística também podem contribuir, mesmo que indirectamente, para alguma desinformação ou, mais rigorosamente, para criar condições que são objectivamente propícias a equívocos comunicacionais, como o que ocorreu há dias, quando imaginei que um tal mercado que tinha sido atacado era mesmo um mercado de uma cidade a viver em guerra.
O “desportoguês”, para utilizar um excelente neologismo de um director de jornal com quem trabalhei e com quem muito aprendi, o “desportoguês” não ajuda nada a esta batalha pelo rigor informativo. Tampouco fidelizará mais leitores de jornais, mais ouvintes de rádio ou mais telespectadores por muito que se pense o contrário.”
Este texto é publicado n’o largo. no âmbito do projeto “Cultura, Ciência e Tecnologia na Imprensa“, promovido pela Associação Portuguesa de Imprensa.