Qual o significado de “mundo russo” nas declarações de Putin sobre a Ucrânia?

A história antiga é instrumentalizada para justificar uma invasão militar.
Qual o significado de “mundo russo” nas declarações de Putin sobre a Ucrânia?
@SteveAllenPhoto via Twenty20
Este artigo foi publicado há, pelo menos, 3 anos, pelo que o seu conteúdo pode estar desatualizado.

As declarações de Vladimir Putin e dos seus assessores mais próximos sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia incluem uma expressão-chave: “Русский Мир” (“Russkiy Mir”). Esta expressão significa, literalmente, “mundo russo”, mas também pode ser interpretada como “paz russa”, devido ao duplo sentido da palavra “mir“.

O termo é usado para justificar o ataque à Ucrânia, que, nas palavras de Putin, é chamado de “operações militares na Ucrânia”. Com essa denominação, o Kremlin intitula-se como um defensor e detentor de tudo o que afirma estar dentro da esfera da cultura russa.

O significado flexível de “Mundo Russo”

Segundo uma pesquisa pública de 2012, do site da Russkiy Mir Foundation, uma organização criada em 2007 pelo presidente Vladimir Putin para “popularizar a língua russa”, o mundo russo é entendido como aquele que se refere aos territórios habitados por pessoas das etnias russas, que falam russo, ou associados à cultura russa. Isso inclui a Rússia propriamente dita e estende-se a locais como o norte do Cazaquistão, a Bielorrússia, regiões de Donetsk e Luhansk, o leste da Ucrânia, a região de Transnístria, na Moldova, a Ossétia do Sul e Abkhazia, na Geórgia, além da Sérvia e de Israel.

O mesmo site também vincula o conceito de “Russkiy Mir” à crença ortodoxa russa:

Segundo o patriarca (líder da igreja russa ortodoxa), o núcleo do Russkiy Mir inclui a Rússia, Ucrânia e Bielorrússia. Tem como base a fé ortodoxa, que encontramos em comum na fonte batismal da Rússia de Kiev. A cultura russa não está limitada por fronteiras de uma etnia e não está ligada aos interesses de um Estado.

Russkiy Mir Foundation

Inicialmente, o termo foi encontrado no século XXI em textos religiosos. Obviamente, a definição do patriarca descreve diversos elementos do que, às vezes, é retratado como poder de influência russo. Inclui o aspeto geopolítico, que aponta as três nações eslavas como intrinsecamente unidas, uma continuidade histórica da Rússia de Kiev, a civilização que se desenvolveu desde o século IX desde a Kiev atual e incluiu boa parte da Ucrânia, da Bielorrússia e da Rússia.

Em 1996, a Rússia e a Bielorrússia anunciaram a criação da União da Rússia e Bielorrússia, que já relevava a ambição de Moscovo de expandir o seu território sobre aqueles que surgiram da Rússia de Kiev.

O “mundo russo” como uma ideologia de Estado a serviço das ambições de Moscovo

A Rússia ampliou o uso do termo “mundo russo” em 2014, quando anexou a Crimeia e pediu apoio às regiões separatistas de Donetsk e Luhansk, no leste ucraniano. O argumento do Kremlin é de que o governo de Kiev impôs uma ucranização forçada, proibindo a utilização da língua russa e agindo com discriminação contra os falantes de russo, atacando, deste modo, o território imaginado dum mundo russo. As alegações russas servem como justificação para o controlo de grandes populações e territórios, que entende como essenciais para criar a sua “identidade russa”.

Tais alegações trazem consequências a longo prazo para outras regiões do antigo espaço soviético, frequentemente descrito na língua de Moscovo como o “Ближнее зарубежье“, “Exterior Próximo” em português, onde vive uma comunidade russa considerável e a língua russa continua relevante.

A mesma alegação de 2014 está a ser novamente utilizada por Moscovo para justificar os ataques a Kiev: uma Ucrânia pró-Ocidente está a ser retratada como estando a renunciar à sua identidade do mundo russo para adotar “valores estrangeiros”, como o feminismo ou os direitos da comunidade LGBTQI, e recusando o russo como língua oficial. Canais mediáticos tradicionais e redes sociais pró-Kremlin usam regularmente o termo “Гейропа” (“Gayropa”, uma fusão das palavras “gay” e “Europa”) para condenar o que consideram ser a decadência do mundo Ocidental e uma ameaça direta ao mundo russo.

Antes de invadir a Ucrânia, Putin fez um discurso histórico, a 21 de fevereiro, no qual utilizou mais da metade do tempo para dar a sua própria interpretação da história antiga e moderna dos territórios ucranianos, russos e entidades estatais e declarou que a Ucrânia pertence ao mundo russo.

Com essa retórica ofensiva e manipuladora, o ataque à Ucrânia tornou-se a “libertação da Ucrânia“. Em nome do mundo russo.


Licença Creative Commons

Este artigo, escrito por Filip Noubel e traduzido por Camilla Gobatti, foi originalmente publicado no site Global Voices Online e republicado em português de Portugal n’o largo ao abrigo da licença Creative Commons CC BY 3.0.

Total
0
Partilhas
Artigo anterior
Emissão da Russia Today suspensa em Portugal

Emissão da Russia Today suspensa em Portugal

Artigo seguinte
Vivemos numa bolha de informação que nós próprios criámos?

Vivemos numa bolha de informação que nós próprios criámos?

Há muito mais para ler...